Em 2021, quem não tem ansiedade? Mas conheço a minha intimamente desde 2009. Naquele ano, Chico morreu. Ele tinha 29 anos e faleceu de complicações no tratamento do linfoma. Luta de 7 anos que acabou de modo tão inesperado quanto começou. Não faz sentido. Para você, Chico é só um nome. Para mim, sua morte foi uma ruptura, um rasgo definitivo e irrecuperável no tecido frágil de minha saúde mental. 
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Ali, a depressão se apresentou junto com a morte.
Desde então, ela me acompanha. Não só nas mortes naturais de avós, mas nos pensamentos, na curiosidade, no medo, no desejo. Eu a via por todo lugar. Ela é furtiva como alguém que te persegue e quando você se vira, não tem ninguém lá. Meus dias decaíam assim, até que me voltei e a encarei. O medo não sumiu. Parou ao meu lado, amigo, e passamos a caminhar: eu, o medo, a morte.​​​​​​​
Em 2018, por alguns meses, precisei cruzar a “cidade da morte” – a Necrópole de São Paulo – e me surpreendi com meu distanciamento das cenas de dor forjadas em mármore e pedra. “Adeus, Giannini mio. Maria Clara”. Maria Clara assinava, uma outra Maria Clara, que sofria e chorava. Mas eu não sentia por ela. Só assistia, inerte. Era para me sentir triste, certo? Não ficar curiosa com a sistemática, com a técnica. Não faz sentido. 
Na sede do cemitério, passei pelo letrex velho, meio troncho, grudado com silvertape. Achei o contraste um desrespeito. Obras de arte contra aquele quadro patético, com nomes. Nomes novos. Novos “habitantes da cidade”. No outro dia, outro nome.
Eu tive vergonha no início. De invadir, de objetificar aquelas dores, aquelas despedidas. Enfim, como uma ladra, fiz a primeira chapa e saí correndo. Eu queria aqueles nomes. No outro dia eles sumiriam. Elas e eles não existiriam mais. Assim como Chico, Francisco Hibrain Valença Vieira, que passou por um letrex e sumiu, virou éter. Eu quis colecioná-los, guardá-los. Elxs só são e serão, além do éter, em nós e nossas moléculas enquanto ainda estivermos vivos. Meus olhos o viram, minha matéria o tocou. Depois que eu também deixar de existir, o que acontece com Chico?
Todos os dias eu cruzava a cidade dos mortos e mais nomes sumiam. De acordo com o letrex, abril durou 2 meses. Alguém era responsável por tirar e colocar as letras. Viraram éter? Não. Essa imatéria abala a matéria, o peito, o cérebro, a saudade. Ali estava, todo dia, um novo nome. Outro nome, e outro e outro. Tira nome, bota outro nome. Um dia normal. ​​​​​​​
A sistemática desumaniza, coisifica. Hoje, 15 de fevereiro de 2021, morreram 528 pessoas no Brasil de COVID-19. Números, nomes num letrex, a sistemática estéril da morte. Outro nome, e outro e outro e outro.
Um dia, nenhum nome. Nenhum? Ninguém? O dia sem nome é dia de alívio. Sem dor, sem choro, sem perda, sem funeral. No meio da maior pandemia dos últimos cem anos, onde a gente conta centenas, às vezes milhares de mortes, de nomes por dia… é tudo o que a gente quer dizer: hoje, ninguém morreu.
Projeto fotográfico e texto selecionado para o Pequeno Encontro de Fotografia | 7ª Edição - 2021
Uma pequena atualização de novembro 2021.
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